O título deste tópico diz muito da minha experiência negativa ao
presenciar pessoas falando da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) com
um distanciamento enorme daquilo que Rogers propunha na construção
experiencial da sua teoria. Também parte de algumas vivências pelas
quais passei e tive imensa dificuldade em escutar as pessoas e me
manter em contato com elas frente a uma postura forçada de
acolhimento e uma ideia meramente discursiva de empatia. Ao mesmo
tempo, diz também da minha experiência positiva de crescimento
pessoal dentro da abordagem e do quanto desejo que ela seja
reconhecida pelo que ela é, dentro do que de fato propõe e,
sobretudo, que sua qualidade enriquecedora de ser preponderantemente
vivencial não seja deturpada nem se perca no meio de nenhum discurso
racionalístico ou qualquer outro movimento que se ausente de contato
com aquilo que é mais vivo e autêntico em cada um de nós.
Este texto é parte do meu trabalho de conclusão de curso (TCC). Fiz
apenas algumas adaptações para deixá-lo mais acessível, no
entanto ele ainda é muito academicista na linguagem utilizada e
menos pessoal do que eu gostaria. De qualquer forma, traduz um pouco
do cuidado que venho construindo ao falar da ACP e atualiza o meu
profundo desejo de que as pessoas entendam o que é esta abordagem,
onde ela está situada no campo da Psicologia e quais são seus
fundamentos teóricos tidos como primordiais. No meu TCC este texto
está intitulado como “O que é e o que não é uma Abordagem
Centrada na Pessoa”, no entanto neste último ano, além das minhas
mudanças pessoais, venho renovando também as minhas leituras da
abordagem, conhecendo outras referências e diante disso penso seja
necessário atualizar minha posição em relação ao modo como venho
enxergando as coisas. Acredito que uma postura de rigidez e
fechamento não pode ser um caminho de ampliação dentro da ACP.
Como o título sugere, isto é apenas uma tentativa de caracterização
do que pode ser uma Abordagem Centrada na Pessoa e, nesta direção,
cabe evidenciar a existência de uma psicologia supostamente
humanista que tem se movimentado nos últimos tempos em sentido
contrário à centralidade da pessoa. Afirmar que existe essa
psicologia é, por si só, quase que um ato político dentro da ACP.
Este movimento ao qual me refiro tem por atributo principal uma
postura de aproximação aos ideias de poder que, ultimamente, vem se
tornando cada vez mais comuns na “modernidade líquida” em que
temos vivido, quer seja em virtude de uma certa realização diante
do acesso ao “admirável lugar do psicoterapeuta”, quer seja por
uma dificuldade da sociedade contemporânea de enxergar os próprios
sentimentos, assumir vulnerabilidades e se permitir vivê-las para
que, assim, se possa haver um encontro diante do outro onde estejamos
verdadeiramente inteiros. Inteiros, “não uma fachada de
conformidade aos outros, não uma negação cínica de todos os
sentimentos, nem uma frente de racionalidade intelectual, mas um
processo vivo, que respira, sente e oscila” (Rogers, 1976, p.
129/130).
Quando
falamos de ACP, estamos dizendo de uma maneira muito singular de nos
relacionarmos com o mundo e com os outros, um modo que vai totalmente
de encontro ao que estrutural e socialmente temos construído
atualmente. No contexto clínico, que é sob o qual tecerei algumas
considerações neste trabalho, a ACP vai na contramão do que
propõem os modelos psicoterápicos hegemonicamente estabelecidos
hoje em dia pelo conhecimento científico. Em termos de ciência,
estamos dizendo de “uma ciência genuinamente humana sobre o
homem”, como o afirmava Gendlin (1970). Em termos de experiência,
penso que faça mais sentido dizer que esta abordagem nada mais é
senão um jeito de viver a própria vida, uma maneira muito peculiar,
verdadeira e presente de existir. Não qualquer jeito: um certo jeito
de viver a própria vida.
A
ACP é antes de qualquer coisa uma abordagem humanista. Dito isso,
compreende-se que ela então é uma abordagem interessada na
dignidade e, sobretudo, na potencialidade da experiência humana. É
existencialista, ou seja, acredita que, lançada no mundo, esta
experiência humana só pode ser significada dentro da sua vivência
concreta, singular para cada sujeito que vai criando-se e
recriando-se continuamente no processo de vir-a-ser. É
fenomenológica, uma vez em que está profundamente interessada nos
fenômenos conforme eles surgem, suspendendo qualquer julgamento
sobre eles e tentando retornar às coisas mesmas (Husserl,
1929), ou, dito de outra forma, "deixar e fazer ver por si mesmo
aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo"
(Heidegger, 2002, p. 65). Estas três características situam a
abordagem dentro de um determinado campo epistemológico a partir do
qual torna-se possível pensar um ser humano livre, autônomo,
responsável por si mesmo e com uma tendência natural ao crescimento
pessoal.
Uma questão primordial: a questão do poder
Uma
consideração fundamental que vale a pena ser retomada em termos de
caracterização da ACP é o fato de ela ter sido, já nos seus
primeiros anos de constituição, um movimento contra-hegemônico, no
sentido de ser uma “antiproposta revolucionária e desconcertante
para o psicoterapeuta de então: pare de fazer tudo o que esteve
fazendo, pare de atuar sobre o outro, pare de tentar dirigir seu
processo de mudança; apenas ouça, apenas seja sensível, apenas
entenda, apenas confie nessa pessoa, apenas esteja com ela, apenas
lhe permita ser, e descubra, nesse processo, as surpreendentes
direções de mudança, autorregulação e crescimento a que isso
pode levar” (Boainaim Jr., 1998, p. 80-81).
Fica
evidenciado a partir disso que a centralidade no cliente é
essencialmente o princípio fundamental que caracteriza o pensamento
rogeriano e nos localiza em relação à sua epistemologia,
diferenciando radicalmente a ACP de outras abordagens
psicoterapêuticas: “não é que esta abordagem dê poder ao
cliente, é que ela nunca o tira” (Rogers, 1986, p.10).
Para que seja possível uma perspectiva onde o cliente seja de fato o
referencial é preciso que o psicoterapeuta seja “capaz de sentir o
outro como digno de respeito, de reconhecer em si ausência de
julgamento pessoal” (Barcellar, 2017) e, principalmente, é preciso
acreditar genuinamente na potencialidade interna que ele tem dentro
de si para crescer e se movimentar na vida de forma positiva e
construtiva. Neste sentido, chegamos então a uma condição sem a
qual não é possível pensar uma Abordagem Centrada na Pessoa: a
crença real de que o “indivíduo tem dentro de si amplos
recursos para a autocompreensão, para alterar seu autoconceito, sua
atitude básica e seu comportamento autodirigido” (Rogers, 1986, p.
16). Em outras palavras: é o cliente quem tem o poder. Mas nós
acreditamos nisso?
Assumindo por base este princípio, algumas questões podem ser
lançadas com o intuito de tentar esclarecer melhor para nós mesmos
se nossa atitude é ou não é uma atitude centrada na pessoa. Pare
agora por um instante e reflita: (1) eu realmente sou capaz de
acreditar na pessoa do meu cliente? Eu verdadeiramente acredito que
por seus próprios recursos ele consiga dar conta de seu caminhar no
processo de crescimento pessoal? Ou eu sou levado por uma outra coisa
em mim que me faz acreditar que sou eu e o poder da minha
intervenção enquanto psicoterapeuta que vão poder libertá-lo para
uma possível evolução?; (2) Diante da questão anterior, eu
realmente sinto a resposta que dei ou eu apenas penso e elaboro
cognitivamente sobre ela?
Lembro de uma vez em que estive num grupo de encontro onde uma
pessoa, depois de muito tempo em silêncio começou a falar, muito
mobilizada, sobre sua imensa dificuldade de se autoarfirmar diante
das pessoas e então alguém interrompeu sua fala para lhe dizer -
verborragicamente – “que ali ela poderia até gritar, se
quisesse”. Depois disso essa pessoa não falou absolutamente mais
nada no grupo durante a tarde inteira. Lembro do meu sentimento de
raiva por essa pessoa não ter sido escutada no que estava dizendo.
Ela estava comunicando sua profunda fragilidade, seu medo e sua dor
frente a um suposto outro que tantas vezes lhe negou a possibilidade
de se colocar e se afirmar. Eu nunca vou esquecer do semblante de
espantado com o qual ela comunicava isso. Suas mãos estavam suadas e
a voz claramente trêmula e ofegante. Ela havia rompido com seu maior
medo e criado um espaço, por ela mesma, para se posicionar e falar
sobre seus sentimentos. Quando uma outra pessoa lhe calou para dizer
que ela poderia falar, seu poder foi abruptamente tirado. O meu
coração disparou de raiva. Olhando agora de fora, anos depois disso
ter ocorrido, percebo o quanto também fui negligente com meu próprio
poder pessoal em não ter me voltado para ela e refletido seu
sentimento. Não precisava ser nada elaborado... talvez se fosse hoje
eu apenas lhe comunicasse que ela estava, naquele momento rompendo
com muita coisa dentro dela para fazer aquilo, ou que sentia que ela
estava partilhando algo grande e forte da sua vida. O que fiz, no
entanto, à época, foi me calar e guardar meus sentimentos. O que
faria hoje talvez pudesse ser algo mais próximo da centralidade
daquela pessoa, algo que se aproximasse de sua experiência real e
concreta, ali, diante de mim. Isto inclusive me reaproximaria de mim
e da minha pessoa e talvez então não tivéssemos saído, nós dois,
em silêncio com um mundo inteiro implodindo por dentro.
Usei este exemplo para evidenciar uma característica muito
importante da ACP: a horizontalidade do poder e, sobretudo, o lugar
de perda de contato e profundidade em que nos colocamos quando
retiramos de alguém sua potência e sua realização em favor de
nossas necessidades interiores. A questão principal se fundamenta no
fato de que “essa abordagem se realiza quando alguém dirige a
melhor parte de si mesmo à melhor parte do outro e, assim, poder
emergir algo de valor inestimável que nenhum dos dois faria sozinho”
(Wood, 2010).
A questão do poder torna-se nevrálgica, neste sentido, uma vez que
foi uma das grandes ressignificações que Rogers trouxe à
psicoterapia a partir da ênfase na relação, “reconhecendo o
poder de um de outro e não de um sobre o outro” (Rocha, 2019. p.
67). Assim, ambas as partes da relação, por meio do encontro, se
atualizam, se reconhecem e se realizam e quanto pessoas. Ninguém
sobre ninguém mas um para o outro.
Na psicoterapia, Rogers atribuiu o poder ao cliente, retirando-o do
lugar de “dependente” para “alguém autônomo, livre e
responsável por si próprio”. Na escola, Rogers atribuiu o poder
ao aluno. Nos grupos de encontro, revelou que era o grupo o principal
responsável pelo seu próprio processo e não os terapeutas. No
livro “Sobre o Poder Pessoal”, quando menciona a abordagem que
ele mesmo construiu, refere-se sempre em termos como “nosso
trabalho”, relembrando afetivamente as outras pessoas que estiveram
coletivamente com ele em sua busca por um modo de existir mais justo
e igualitário evidenciando muito delimitadamente seu desejo: o de
libertar o indivíduo de suas amarras para um caminhar para frente
(Rogers, 1989).
Condições necessárias e suficientes
Quando Rogers rompe com a ideia de um psicoterapeuta poderoso que
guia e lidera o processo de uma pessoa, ele inicia um novo modo de
pensar a psicoterapia não por meio da palavra ou direcionamento, mas
por meio de atitudes muito simples, que seriam não só necessárias,
mas suficientes para uma relação pudesse contribuir no crescimento
pessoal de alguém.
Dentro do contexto da relação terapêutica a ACP propõe uma
atmosfera facilitadora. Ou seja, não são somente as palavras
emitidas pelo psicoterapeuta que serão recebidas e significadas pelo
cliente, mas o todo: o tom dessas palavras, o cuidado emitido nelas,
a calorosidade da fala, sua intencionalidade, o silêncio e todas as
atitudes que serão sentidas pela pessoa no aqui-agora do encontro.
Qualquer encontro no qual seja necessário falar para a outra pessoa
(e não comunicar-lhe vivencialmente) que se acredita nela e no seu
potencial, não é ACP. É somente à medida em que o sujeito vive
dentro dessa atmosfera um sentimento de confiança e que de fato haja
ali algo que lhe faça se sentir afirmado, seguro e livre para falar,
viver e sentir tudo quanto possa estar dentro da sua experiência, é
somente quando a pessoa experiencia as emoções dessa maneira,
integral e abertamente, que ela vivencia a si mesma e pode então
tornar-se aquilo que de fato é (Rogers, 1997).
De igual maneira, ouvir o cliente, não é apenas escutar suas
palavras, mas também os sentimentos contidos dentro delas. A
confusão, o medo, a insegurança ou o que mais estiver dentro da
experiência daquela pessoa no instante em que ela rompe o silêncio
- o realizando - (Amatuzzi, 2010) com sua fala. O que significa que é
preciso, por parte do psicoterapeuta, um deslocamento do modo como
nos relacionamos normalmente para um outro lugar; o de acolhimento.
No livro Um Jeito de Ser Rogers descreve um pouco sua experiência
pessoal a partir desse lugar, onde o referencial é o vivido da outra
pessoa:
“Quando digo que gosto de
ouvir alguém estou me referindo evidentemente a uma escuta profunda.
Quero dizer que ouço as palavras, os pensamentos, a tonalidade dos
sentimentos, o significado pessoal, até mesmo o significado que
subjaz às intenções conscientes do interlocutor. Em algumas
ocasiões, ouço, por trás de uma mensagem que superficialmente
parece pouco importante, um grito humano profundo, desconhecido e
enterrado muito abaixo da superfície da pessoa. Assim, aprendi a me
perguntar: sou capaz de ouvir os sons e de captar a forma do mundo
interno desta outra pessoa? Sou capaz de pensar tão profundamente
sobre o que me está sendo dito, a ponto de entender os significados
que ela teme - e ao mesmo tempo gostaria de me comunicar -, tanto
quanto ela os conhece? (Rogers, 1987. p. 5)
É através dessa atmosfera que passa a ser possível à pessoa em
processo de psicoterapia fazer contato com as questões que circundam
sua própria existência. A partir do momento em que alguém partilha
suas experiências com alguém que as enxerga e aceita, então essa
pessoa vai tornando cada vez mais possível arranjar-se criativamente
com isso. Na ACP, cabe ao indivíduo – e somente a ele - a
capacidade e o poder de distinguir, sem ser guiado, os passos que o
conduzirão a um relacionamento mais maduro e mais confortável com
ele próprio e com a realidade (Rogers, 2008, p. 33).
Rogers chamava este movimento natural do organismo de Tendência
Atualizante e esta é uma concepção basal e fundamentalmente
importante para que a ACP possa ser discutida (Hall et al., 2000;
Moreira, 2007). Este conceito é a medula da Abordagem Centrada na
Pessoa e acreditar nela, ou seja, acreditar que "todo organismo
é movido por uma tendência inerente para desenvolver todas as suas
potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua
conservação e seu enriquecimento" (Rogers & Kinget,
1965/1979) é a base que estrutura e fundamenta uma relação genuína
com o outro. Por tanto um desafio enorme para a nossa geração
(Wood, 1983) e, mais ainda, para o psicoterapeuta que, sem isso,
tende ou a responsabilizar-se pelo processo de seu cliente ou, pior,
a passar por cima dele.
Carl Rogers escreveu um artigo muito emblemático em 1957 intitulado
“The necessary and sufficient conditions of therapeutic personality
change” (Condições necessárias e suficientes para a mudança
terapêutica da personalidade) onde descreve seis (06) condições
necessárias e suficientes para a mudança terapêutica de
personalidade. Note que o título diz condições necessárias e
suficientes o que implica dizer que qualquer coisa além disso passa
a sobrar dentro de um processo de mudança. São elas:
“(1) Que duas pessoas
estejam em contato numa frequência estável, sem variações. Que o
ritmo das sessões se mantenha constante para que a terapia seja um
processo; (2) Que a primeira pessoa, o cliente, tenha dúvidas e
conflitos quanto a ir às sessões; que sua presença nelas nunca
seja algo tranquilo e rotineiro; (3) Que a segunda pessoa, o
terapeuta, ao contrário, não tenham nenhuma dúvida ou conflito
quanto a estar nas sessões; que a sua presença nelas seja sempre
clara e inequívoca; (4) Que o terapeuta tenha em relação ao
cliente aceitação positiva incondicional com relação às suas
faltas e atrasos de maneira que estes possam ser integrados
terapeuticamente à terapia; (5). Que o terapeuta tenha compreensão
empática do quadro de referência interno do cliente com relação a
seus conflitos; (6) Que o cliente perceba, maximamente, o rigor do
terapeuta quanto à realização das sessões ou a condição 3.”
(Rogers, 1957. p?)
Muitos outros estudos foram feitos a partir deste artigo a fim de
averiguar sua consistência empírica no campo da pesquisa em
psicoterapia (Bozarth et al., 2000) e a hipótese de Rogers foi
consistentemente sustentada (Truax and Mitchell, 1971; Patterson,
1984; Bozarth & Stubbs, 1994).
Em contrapartida, uma série de trabalhos de diversos autores deste
campo se referem às condições postuladas por Rogers apenas como
preparatórias para as posteriores intervenções do terapeuta
(Lazarus, 1993; Norcross, 1992; Quinn, 1993) supondo-as, assim, como
necessárias, porém insuficientes para um processo psicoterapêutico
(Stubbs & Bozarth, 1994). No entanto, uma observação importante
destes estudos foi levantada por Schaff (1992) que afirmou que o
modelo operacional adotado nestas abordagens pressupõe que ao
terapeuta caiba a responsabilidade de agir e intervir para a mudança
do cliente, uma vez que ele sabe o que está acontecendo com ele e o
que necessita ser feito em relação a isso.
O percurso feito pela Abordagem Centrada na Pessoa nos leva ao oposto
desta crença comum à Psicologia de que o terapeuta detém um saber
superior ou mais importante que o do paciente. Contrária a isso, a
ACP propõe uma renúncia ao controle e ao direcionamento e, ao mesmo
tempo, um mergulho nas experiências subjetivas cuja profundidade
depende do quanto se confia ou não na sabedoria do organismo (Wood,
1983), uma vez que ele tem “uma verdadeira potência [...] que se
realiza através de um processo de atualização individual e
contínuo das suas potencialidades tanto físicas quanto
psicológicas” (Bacellar, 2017. p.?).
As condições facilitadoras
Acredito que o artigo de Rogers pode ser sintetizado em três
conceitos básicos que junto à Tendência Atualizante compõem a
base da abordagem e servem de referência para definir se a relação
estabelecida entre psicoterapeuta e cliente é, de fato, uma
Abordagem Centrada na Pessoa. São eles: (1) Congruência ou
atenticidade; (2) Aceitação Incondicional ou Consideração
Positiva e (3) Compreensão Empática. Estes conceitos foram profunda
e empiricamente investigados por Rogers e, sobretudo, foram por ele
vivenciados na sua extensa trajetória de pesquisador e terapeuta
humanista. No decorrer do percurso constitutivo feito pela ACP, vale
destacar, estes conceitos sofreram pequenas alterações de
nomenclatura e foram se ampliando à medida em que a própria
experiência de Rogers com a abordagem foi se movimentando e ganhando
mais forma tanto com as pesquisas empíricas quanto com as vivências
em psicoterapia individual e nos grupos de encontro (Rogers, 1987).
Congruência (ou autenticidade) é “quando o que estou vivenciando
num determinado momento está presente em minha consciência e quando
o que está presente em minha consciência está presente em minha
comunicação, então cada um desses três níveis está emparelhado
ou é congruente. Nesses momentos, estou integrado ou inteiro, estou
inteiramente íntegro” (Rogers, 1987). Neste sentido, na
congruência há algo de um atravessamento nos níveis do sentimento,
pensamento e comunicação/ação. O sujeito experimenta o que sente,
está consciente disso e pode comunicá-lo ao outro e agir a partir
disso no mundo. Um ponto importante a ser destacado sobre isso é que
Congruência não é sinônimo de sinceridade. Eu posso ser
extremamente sincero e mesmo assim estar inautêntico com a minha
experiência.
Um exemplo muito comum que pode dar luz a este conceito é o de
pessoas que passam suas vidas inteiras em relacionamentos
heteroafetivos por não conseguirem afirmar/reconhecer a
possibilidade de amar alguém ou sentir atração por pessoas do
mesmo gênero. Muitas vezes essas pessoas não conseguem sequer
reconhecer isso para si mesmas e então vivem um processo de
incongruência consigo próprias tão violento que lhes adoece. Às
vezes tomam consciência disso, mas não se permitem pensar a
respeito e quando pensam, não aceitam esses pensamentos. Não
aceitando, passam agir não conforme o que seu organismo comunica,
mas a partir do que pressupõe ser o esperado delas, ou seja,
escondem quem verdadeiramente são, se omitem de ser. Este é um
caminho muito difícil porque é profundamente angustiante e doloroso
não gostarmos de nós próprios e termos de viver uma vida que não
é a nossa, no entanto isso ainda é muito comum no mundo em que
vivemos.
A Aceitação Incondicional (ou consideração positiva) pode ser
entendida como o movimento de, ao ser afetado pelas experiências do
outro, senti-la como dignas de consideração positiva, isto é,
reconhecer genuinamente diante do cliente que “entre todas estas
experiências nenhuma existe que eu distinga como mais ou menos digna
de consideração” (Rogers, 1977, p. 175). Aceitar
incondicionalmente alguém significa se abrir - em sua experiência -
para aquela pessoa toda, sem querer moldá-la, aceitando em si que
ela siga seu próprio fluxo, dentro do seu próprio ritmo e tempo,
acolhendo o seu ir e vir quer seja na confusão, no medo ou no
reconhecimento ou enfrentamento das adversidades.
Um cliente, por exemplo, que fala há um ano sobre o mesmo tema
precisa ser reconhecido e ter seus sentimentos em relação a isso
validados tanto quanto um outro cliente que parece caminhar muito
rápido no seu processo psicoterapêutico. Esta é uma capacidade
muito importante para ser desenvolvida dentro de uma perspectiva
centrada na pessoa e requer também do psicoterapeuta que ele se
reavalie constantemente, se atualize e se conscientize de sua prática
clínica para que cada vez mais, aceitando-se, possa aceitar também
o outro em tudo quanto possa estar vivenciando na sua caminhada
existencial.
A Compreensão Empática, por fim, é a atitude de “assumir, tanto
quanto for possível, a estrutura interna do cliente, perceber o
mundo como o cliente vê, deixar de lado todas as percepções a
partir da estrutura de referência externa” (Rogers, 1992, p. 38) e
mergulhar no mundo do cliente. Trata-se de caminhar junto com a
pessoa a partir de sua própria percepção de mundo e este, sem
dúvidas, é um grande desafio ao terapeuta, sobretudo porque estamos
socialmente mais próximos de um modelo de relacionamentos onde há
vivencialmente uma grande distância desta experiência existencial
de contato com o mundo do outro (Stevens, 1978). Para além disso, é
preciso lembrar que, assim como os demais, é um conceito que caminha
com o tempo e se atualiza, sendo, dessa forma, segundo Tassinari &
Durange (2014) um tema atual e de constantes transformações,
sobretudo devido aos desafios da modernidade tardia.
Ser
genuinamente empático com o outro é um dos maiores desafios do
psicoterapeuta rogeriano. Sair da nossa estrutura para se aproximar o
máximo possível do referencial de alguém (sem se misturar) é um
movimento muito custoso, às vezes. Costumo dizer que este é o
conceito mais simples de ser entendido teoricamente e o mais complexo
de ser estendido e integralizado à nossa prática. A empatia
enquanto atitude é um lugar muito difícil de acessarmos sobretudo
para nós que compomos essa contemporaneidade ensimesmada. É preciso
nos ouvirmos muito na nossa singularidade para podermos compreender a
singularidade do outro e isto não só pode, mas precisa levar um
certo tempo. Compreender o outro sem identificar-se com sua fala, sem
implicar a pessoa e suas vivências nos seus próprios sentimentos
particulares é, para mim, um dos maiores desafios que enfrentamos na
caminhada por uma abordagem genuinamente empática com a alteridade
da pessoa em sofrimento.
Estes
são os três conceitos que compõem o alicerce teórico da ACP e
chamamos de Condições Facilitadoras. Eles dialogam entre si, mas
cada um tem sua particularidade e, juntos, compõem a atmosfera do
encontro centrado na pessoa bem como a postura dialógica nas
respostas reflexivas direcionadas à pessoa. As respostas-reflexo
(gosto mais de chamar respostas reflexivas) são o que muitas pessoas
compreendem como “a técnica-base para a estruturação de sessão
na ACP”. Em resumo, trata-se da atitude mais básica do terapeuta
em refletir o sentimento presente em na comunicação inteira da
pessoa. É, de fato, uma atitude genuína de apreço, curiosidade e
interesse pelo que o outro está dizendo e requer que todos os
conceitos supracitados estejam construindo esse movimento. Refletir o
sentimento de alguém é ir para além da sua fala, é ouvir também
o corpo dessa pessoa, suas expressões, seus gestos, seu tom, sua
inteireza e sua significação comunicativa. Com o tempo o
psicoterapeuta acepista vai naturalizando esta atitude, integrando-a
a seu jeito de ser e, assim, vai podendo estar mais com o outro e
entendendo que inclusive dentro do silêncio isso pode se manter
acontecendo e descobre que é simplesmente sobre ir vivendo - com o
outro - aquele encontro.
Embora pareça simples, incorporar tudo isso verdadeiramente como
atitude (e não como discurso) é o que define se é ou se não é
uma Abordagem Centrada na Pessoa. Há uma linha muito clara que
delimita isso e só pode ser enxergada por quem está aberto para se
enxergar também nesta caminhada. A ACP convida o sujeito a sair do
lugar seguro da intelectualização e da análise para um outro
lugar, onde a força que garante a sustentação de tudo é a
potencialidade do encontro e
Por este motivo, falar de terapia nestes moldes é, ao mesmo tempo
muito simples e muito complexo. Simples no sentido de que é apenas
um deslize sobre a própria natureza humana, que se sensibiliza
diante da vida, do mundo e do outro. Simples porque é sobre o que
sentimos quando estamos em contato genuíno com nossa própria
existência e com a existência de outra pessoa. Porém também é
complexo porque pode soar tão simples que algumas pessoas, não
entendendo a beleza e magnitude disso, podem facilmente entrar na
ilusão racional de estarem fazendo isso por meio de discursos
prontos e simplistas. O psicoterapeuta que abraça o cliente e que
diz que aquela dor vai passar não está fazendo ACP. De igual
maneira, o psicoterapeuta que apenas repete automaticamente as falas
do cliente, não está fazendo ACP. Nós devemos viver com o outro
sua dor, compreender como ela significada e refletir isso para que
então ela possa ser explorada, reconhecida e integralizada ao campo
experiencia daquela pessoa. O processo de “cura” se dá neste
curioso paradoxo: é somente quando eu me aceito como sou que então
eu mudo (Rogers, 1992).
(In)conclusões: um jeito de ser, uma experienciação
organísmica, uma ética 2
A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) faz uma leitura muito potente do
ser humano e aposta na presença presença significante da pessoa em
todo o seu movimento de expressão (Amatuzzi, 2001). Sobre este tipo
escuta, novamente, Carl Rogers afirma:
“Quando efetivamente ouço
uma pessoa e os significados que lhe são importantes naquele
momento, ouvindo não suas palavras, mas ela mesma, e quando lhe
demonstro que ouvi seus significados pessoais e íntimos, muitas
coisas acontecem. Há, em primeiro lugar, um olhar agradecido. Ela se
sente aliviada. Quer falar mais sobre seu mundo. Sente-se impelida em
direção a um novo sentido de liberdade. Torna-se mais aberta ao
processo de mudança.” (Rogers, 1987, p. 06)
Rogers sinaliza o tempo inteiro sobre a experiência organísmica,
sobre a necessidade de a ouvirmos no outro e em nós mesmos. Acredito
que este seja o principal objetivo de um psicoterapeuta centrado na
pessoa: aprender a ouvir organismicamente.
Uma vez que temos por compreensão básica que a Abordagem Centrada
na Pessoa, é, antes de qualquer outra coisa, um jeito de ser, é
preciso considerarmos algumas questões importantes como as
levantadas por Branco (2019) no seu livro Fundamentos
epistemológicos da abordagem centrada na pessoa no qual ele
defende a existência de um “fieri epistemológico” que nos
reposiciona diante de uma ética da abordagem. Não é qualquer jeito
de ser, não é qualquer atitude. É preciso um jeito de ser muito
específico, muito dentro de uma ética da alteridade (consultar tese
Emanuel Meireles).
Em resumo, é sobre um certo modo de ouvir e um certo modo de ser
ouvido. De novo, não qualquer um: um certo jeito. A ACP é um modo
de estar com o outro muito sensível, muito presente, sem
responsabilizar-se por ele, sem querer guiar seu movimento
existencial ou consertá-lo, mas em um tal estado de procura com ele
que é anterior a tudo: é dentro da humanidade de cada um, é no
aqui-e-agora. Por isso a Abordagem Centrada na Pessoa em sua
epistemologia se estrutura fundamentalmente em uma ética muito
peculiar na qual teoria, processo pessoal, supervisão clínica e
vivências na abordagem precisam achar um caminho de alinhamento,
fluxo e congruência e, assim, se integrem no campo experiencial do
psicoterapeuta. Caso contrário será apenas palavra por palavra,
pensamento por pensamento, “um jeito de ser por jeito de ser”
(Junior, 2020).
_________________
¹ Este texto está em pleno processo de construção. Desse modo, está sendo
atualizado pelas minhas novas leituras da abordagem. Neste sentido não só
o título, mas toda a sua estrutura será modificada em breve. Disponho apenas com o objetivo de fazer referência à Abordagem e deixar este espaço virtual com um pouco mais de respostas, muito embora eu ainda esteja buscando por elas.
² Este tópico é um trabalho que venho construindo com um amigo e decidi colocar apenas alguns recortes para servir de finalização deste texto.
Referências
Para acesso a qualquer referência deste trabalho ou mesmo para sugestões ou críticas, favor enviar e-mail para marear.psi@gmail.com. Uma vez que é um trabalho em plena construção, estou revisando, atualizando e reajustando toda a bibliografia para, em breve, dispor aqui.